quinta-feira, 24 de julho de 2008

Política telefonista

Vivemos num país onde a quase totalidade (mais de 90%) da dinâmica empresarial corresponde a pequenas (ou muito pequenas) e médias empresas. Além disso, são elas que empregam e permitem o sustento da maioria dos portugueses. Em Portugal, grande parte da criação de riqueza e de emprego está assente em dinâmicas empresariais de pequena dimensão, muitas vezes familiares.
A nossa economia depende, e dependerá cada vez mais, não de milagres, mas da iniciativa dos portugueses, do seu grau de empreendedorismo, da coragem de correr riscos, da criatividade e capacidade de inovação, da dedicação ao trabalho. Já estaremos todos a pensar: ora, isso são boas notícias, porque os portugueses, em regra, e no devido contexto, são empreendedores, criativos, trabalhadores. Mais, nos quatro cantos do mundo, para onde emigraram, costumam ser trabalhadores apreciados e empresários de sucesso.
Há, no entanto, no nosso país, muitos aspectos a modificar – desde logo ao nível da qualificação dos portugueses –, para que o contexto seja apropriado ao desenvolvimento económico e social, ao progresso que todos desejamos. As apostas necessárias para criar um ambiente favorável ao progresso podem ser muitas e complexas, mas uma é notória e urgente: exigir um Estado árbitro, isento, rigoroso e transparente. Um Estado menos jogador (intervencionista), que vicia e altera permanentemente as regras do jogo, e que, vez sem conta, sob a desculpa de estar a intervir para nosso bem, não se percebe que interesses beneficia.
Assim, ganha enorme relevância, para a actividade económica livre e concorrencial – a única que serve aos cidadãos –, o desempenho da Justiça e da Administração Pública, seja central ou local.
Há umas semanas atrás, no programa Prós e Contras, o Dr. Basílio Horta, presidente da Agência Portuguesa de Investimento, que tem entre as suas missões a captação de investimento estrangeiro, disse, vangloriando-se das conquistas recentes da API, e procurando elogiar o governo, que o Primeiro-Ministro e o ministro da Economia se tinham empenhado pessoalmente em muitos dos casos, tendo chegado a fazer telefonemas para desbloquear “constrangimentos burocráticos”1. Disse-o como se essa fosse tarefa para os principais responsáveis pelo nosso governo. Fantástico. Certamente que, entre os que assistiam, muitos terão aplaudido essa discriminação positiva em favor do desenvolvimento do país. Eu não.
Um dos males da nossa democracia, pouco madura, reside na necessidade dessas intervenções, desses telefonemas a desbloquear “situações”. O pior é que a maioria dos cidadãos ou empresários não têm a quem telefonar. Aquilo que acontece ao nível do governo, acontece também a todos os níveis da Administração Pública por aí abaixo – há quem consiga esse vantajoso grau de proximidade com o poder, mas a grande maioria não o consegue. Além de que esse é um modelo abjecto.
A par com essa mania de tirar o chapéu aos grandes e aos compadres, há todo um tecido empresarial, de iniciativa, de trabalho, que não merece sequer o menor respeito: apenas o acesso a uma administração simples, eficiente, imparcial, que evite a necessidade de telefonemas especiais.
De que valem a “empresa-na-hora” e o tão pregado “pensamento positivo”, se depois há uma fileira de “pequenos poderes” espalhados por múltiplos organismos, que tão difícil tornam a iniciativa a um potencial empresário?
Sem a isenção da Administração Pública e dos seus responsáveis, sem a simplificação de procedimentos, e sem uma Justiça actuante e célere, acessível a todos, os empreendedores cairão em desânimo e abdicarão. Ficará apenas o deserto do favorecimento aos grandes investimentos - nalguns casos de rentabilidade questionável - e ao pequeno compadre.
É a hipoteca do nosso futuro. É a cegueira política, que permite que a árvore esconda a floresta.
Ângelo Ferreira
[publicado no jornal Diário de Aveiro, edição de 22 de Julho de 2008]
1. apesar de tudo, e em abono da pessoa, Basílio Horta dizia em 14.11.2005 que a intervenção do estado na Economia devia ser «Intervenção com o intuito de eliminar barreiras, não de gerir».

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