terça-feira, 15 de julho de 2008

Não poupemos em suor aquilo que pudermos poupar em sangue e lágrimas


Na obra “Uma Busca Inacabada: Autobiografia Intelectual”*, Popper diz-nos que uma das melhores definições de “razão” e “razoabilidade” era «abertura à crítica – estar pronto para ser criticado e ter vontade de se criticar a si próprio» e que «essa atitude crítica de razoabilidade deve ser levada tão longe quanto possível».
Como dizia o filósofo, «implícita nesta atitude está a compreensão de que teremos sempre de viver numa sociedade imperfeita», uma vez que «até as pessoas boas são imperfeitas», «cometemos erros por não saber o suficiente» e «existirão sempre irresolúveis colisões de valores». Trata-se, portanto, de uma procura permanente da verdade, nunca absoluta, através de tentativa e erro, aprendendo com os erros, sendo capazes de escolher entre inovação e tradição.
Karl Popper afirmava que não pode haver sociedade humana sem conflito, porque tal «não seria uma sociedade de amigos, mas de formigas». Mesmo que ela fosse alcançável, sublinhava, «há valores humanos da maior importância que seriam destruídos», pelo que, a consciência desse facto nos deveria impedir de procurar atingir tal objectivo. Como bem avisava, isso não deve impedir-nos de «tentar provocar uma redução do conflito», e que este exemplo de colisão de valores ou de princípios mostra «que as colisões de valores e de princípios podem ser valiosas e, na verdade, essenciais para uma sociedade aberta».
Segundo o próprio, um dos argumentos principais de “A Sociedade Aberta” é dirigido «contra o relativismo moral», pois o facto de «os valores ou princípios morais poderem entrar em colisão não os invalida». Sublinhou ainda que, podendo eles ser descobertos, e até inventados, relevantes numas situações e irrelevantes noutras, acessíveis a algumas pessoas e inacessíveis a outras, isso era muito distinto do relativismo, «da doutrina que afirma que todo e qualquer conjunto de valores pode ser defendido».
Apesar de dizer que existia muita coisa errada na nossa sociedade ocidental, o filósofo também sabia que ela é a melhor que existe, e a que melhor nos permite usufruir deste mundo maravilhoso em que vivemos, com maior prosperidade e justiça. Esta concepção nada revela contra outros povos, mas antes nos exorta (a todos!) a estabelecer pontes de diálogo e de fraternidade, sem, no entanto, abdicar dos nossos valores e das nossas conquistas, que estão na base dos direitos humanos consagrados universalmente, embora nem sempre respeitados, independentemente dos pontos cardeais.
Esta consciência obriga-nos a lutar permanentemente pela liberdade que amamos, pelo direito à liberdade de pensamento, de expressão e à diversidade de opções, rejeitando, no entanto, o relativismo moral, por vezes cativo da conveniência política, porque há valores importantes, que estão na base de uma sociedade que devemos preservar.
É também a consciência que não podemos abdicar da nossa responsabilidade, sobretudo pessoal, a favor de terceiros ou do Estado, numa sociedade de direitos e deveres, de igualdade de oportunidades, e do dever da solidariedade para com o outro. Uma sociedade aberta só é possível num Estado de Direito, sob o primado da lei, limitando e equilibrando todos os poderes. Reside neste princípio a necessidade de delimitar a acção do Estado ou do Governo, cuja tentação, mais ou menos consciente, é a de permanentemente invadir a esfera de liberdade dos cidadãos, conduzindo-os, moldando-os colectivamente, anulando a sua capacidade de iniciativa, na legítima demanda do seu bem (e do bem comum), tornando-os dependentes de uma entidade abstracta que tudo resolve, e nada resolve afinal, resultando numa forte alienação colectiva.
Num mundo que tem melhorado à medida que as sociedades se abrem, mas onde muito há ainda a fazer, e muitos são os desafios que se nos colocam perante os novos tempos, vale, com o devido enquadramento, a perspectiva de liderança partilhada ao grande Nelson Mandela por um pastor humilde que conheceu na juventude: o melhor líder não é aquele que vai na frente do seu rebanho indicando o caminho, mas aquele que deixa os melhores avançar, e que, seguindo-os, ajuda os que ficam para trás a avançar. Perante o importante desígnio da liberdade de escolha, que produz as legítimas alternativas de vida e um maior progresso sócio-económico, é igualmente inalienável cultivar uma sociedade com igualdade de oportunidades, mais justa e solidária, sem abdicar do impreterível objectivo de nunca deixar ninguém para trás.
João Carlos Espada, no prefácio à obra citada, conta que Popper lhe explicou que admirava muito uma expressão moral do Ocidente, mal definida, que designava como gentlemanship, e de que Winston Churchill era o melhor exemplo: «os gentleman nunca se tomam demasiado a sério, mas estão preparados para tomar muito a sério os seus deveres, especialmente quando os outros só falam dos seus direitos».
Este grande homem do século XX, tão determinante para a nossa liberdade, governou, num dos períodos mais difíceis da humanidade, prometendo nada mais que sangue, suor e lágrimas.
Pode parecer pouco, mas, o maior desafio para Portugal é trabalhar para ser, todos os dias, melhor! Devemos afirmar essa vontade, todos os dias, nas coisas aparentemente mais pequenas, porque é nos pormenores que está a diferença.
Com liberdade, esperança, solidariedade e determinação, não poupemos em suor aquilo que pudermos poupar em sangue e lágrimas.

Ângelo Eduardo Ferreira
Membro do MEP
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*Karl Popper (2008). Busca Inacabada: Autobiografia Intelectual. Lisboa: Esfera do Caos.

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