Estávamos em 1958, mais de uma década depois do fim da II Grande Guerra. A fome abrandava um pouco a ira com que nos castigara e começava, lentamente, a autorizar a construção de um futuro melhor. Mas estávamos ainda longe de o adivinhar. Os tempos, teimosamente difíceis, exigiam imaginação e largueza de espírito, que completassem, à falta de melhor, o vazio dos estômagos com a matéria dos sonhos. Os pobres antigos, que eram a grande maioria da população, sabiam, repartindo a pobreza e o que mais, aquecer os corações de esperança. Fazia-se banquete de um “pouco-mal-me-chega”.
Recordo com saudade o meu avô que, sentando à lareira, com os netos em redor, era um contador de histórias inacreditáveis, aventuras insólitas que inventava sob os nossos intensos olhares de espanto e as sombras que dançavam nas paredes de adobo, animadas pelo fogo da lareira, que cozia uma “água-de-couves” em panela de ferro. Na penumbra daquela cozinha, no silêncio nocturno da aldeia, aprendia-se a sonhar, a ouvir, a pensar para lá da nossa curta geografia e parca condição.
Era o mês do S. Martinho e chovia que Deus a dava. O céu pesava sobre os meus pequenos ombros no caminho de casa mais do que o habitual. O caderno da segunda classe tinha acabado. Tinha de pedir outro à minha mãe e não sabia como fazê-lo. Quando lho disse, ela sabiamente me fez ver o espaço que existia nas margens, que eram sempre uma boa tábua de salvação para pobre nadador.
Dias depois não houve solução. Nem margens, nem dinheiro para outro caderno. A mãe mandou-me falar com a professora, para mo dar da caixa escolar, que para alguma coisa eu a pagava. A professora negou-mo com base na alegação final de que o meu pai estava em África e por isso era rico. Dito e feito, afinal, naquela altura, quem podia ajuizar melhor que a senhora professora?
O meu pai lá continuava a “enriquecer” por África, enganado por um familiar, e a minha mãe a trabalhar de sol a sol na cerâmica, a carregar tijolo para sustentar os filhos, quatro, e comprar umas calças, que certamente só cá existiam, para enviar ao pai pelo correio, com uns tostões nos bolsos.
O mês havia sido muito chuvoso, o que nem sempre era bom para o corpo e quase sempre era mau para a alma. Mas a humidade trazia também os míscaros, que além de gratuitos, sabiam muito bem. Era uma festa procurá-los nos pinhais ali perto, uma autêntica diversão da criançada. Enquanto isso, lá íamos apanhando uma lenha perdida, umas pinhas, e agulhas, para acalorar as histórias do avô e a sopa da avó.
Dezembro foi um mês frio. Talvez pareça hoje impossível, mas de manhã as terras e os caminhos estavam brancos de neve, a água gelada nas poças, a cara cheia de cieiro e os dedos a arder de frieiras. Eu já tinha umas tamancas de madeira, cobertas na frente com pele, mas alguns iam com os pés nus para a escola e voltavam descalços para casa. Naqueles momentos, embora estivesse calçada, o frio entrava-me pelos olhos até à alma. Ainda hoje sinto arrepios quando penso nisso.
Gostava muito de aprender. Além de que escola era melhor do que lavar a roupa no tanque, cozinhar e cuidar dos meus irmãos mais novos. Infelizmente, porém, nem sempre podia dedicar mais tempo à primeira. Além disso, não tinha livro e estudava à luz da vela. Não me esqueço daquele frio da sala de aula, que parecia não afectar a professora, que ia dando a aula sentada junto a um aquecedor e tomando chá que trazia numa garrafa termo. Ainda sinto o aroma da banana que ela saboreava para nosso “entretimento” e, quem sabe, como estratégia para mantermos nela a concentração. Lá que resultava, isso resultava.
O Natal estava a chegar e, com ele, uma enorme e regeneradora felicidade. As crianças aguardavam, com uma ansiedade tão inocente quanto forte, a vinda do menino Jesus. É que, além de anunciar a chegada de um ano novo e seguramente melhor, ele deixaria, pela calada da madrugada de 25, nas tamancas junto à lareira, presentes para os que se tinham portado bem no ano que findava. Nessa manhã, que ainda era noite, corri para junto da fogueira para me deslumbrar com o brilho cintilante de 3 cigarros de chocolate, 5 bombons recheados, 5 nozes e 5 figos secos.
Hoje, na mesma aldeia, há uma fartura que faz esquecer aqueles tempos, e ainda bem. No entanto, se a maioria das pessoas parece ter de tudo, sempre há quem tenha algumas coisas de mais e outras de menos. Valerá a pena pensar nisto?
Ângelo Ferreira
Recordo com saudade o meu avô que, sentando à lareira, com os netos em redor, era um contador de histórias inacreditáveis, aventuras insólitas que inventava sob os nossos intensos olhares de espanto e as sombras que dançavam nas paredes de adobo, animadas pelo fogo da lareira, que cozia uma “água-de-couves” em panela de ferro. Na penumbra daquela cozinha, no silêncio nocturno da aldeia, aprendia-se a sonhar, a ouvir, a pensar para lá da nossa curta geografia e parca condição.
Era o mês do S. Martinho e chovia que Deus a dava. O céu pesava sobre os meus pequenos ombros no caminho de casa mais do que o habitual. O caderno da segunda classe tinha acabado. Tinha de pedir outro à minha mãe e não sabia como fazê-lo. Quando lho disse, ela sabiamente me fez ver o espaço que existia nas margens, que eram sempre uma boa tábua de salvação para pobre nadador.
Dias depois não houve solução. Nem margens, nem dinheiro para outro caderno. A mãe mandou-me falar com a professora, para mo dar da caixa escolar, que para alguma coisa eu a pagava. A professora negou-mo com base na alegação final de que o meu pai estava em África e por isso era rico. Dito e feito, afinal, naquela altura, quem podia ajuizar melhor que a senhora professora?
O meu pai lá continuava a “enriquecer” por África, enganado por um familiar, e a minha mãe a trabalhar de sol a sol na cerâmica, a carregar tijolo para sustentar os filhos, quatro, e comprar umas calças, que certamente só cá existiam, para enviar ao pai pelo correio, com uns tostões nos bolsos.
O mês havia sido muito chuvoso, o que nem sempre era bom para o corpo e quase sempre era mau para a alma. Mas a humidade trazia também os míscaros, que além de gratuitos, sabiam muito bem. Era uma festa procurá-los nos pinhais ali perto, uma autêntica diversão da criançada. Enquanto isso, lá íamos apanhando uma lenha perdida, umas pinhas, e agulhas, para acalorar as histórias do avô e a sopa da avó.
Dezembro foi um mês frio. Talvez pareça hoje impossível, mas de manhã as terras e os caminhos estavam brancos de neve, a água gelada nas poças, a cara cheia de cieiro e os dedos a arder de frieiras. Eu já tinha umas tamancas de madeira, cobertas na frente com pele, mas alguns iam com os pés nus para a escola e voltavam descalços para casa. Naqueles momentos, embora estivesse calçada, o frio entrava-me pelos olhos até à alma. Ainda hoje sinto arrepios quando penso nisso.
Gostava muito de aprender. Além de que escola era melhor do que lavar a roupa no tanque, cozinhar e cuidar dos meus irmãos mais novos. Infelizmente, porém, nem sempre podia dedicar mais tempo à primeira. Além disso, não tinha livro e estudava à luz da vela. Não me esqueço daquele frio da sala de aula, que parecia não afectar a professora, que ia dando a aula sentada junto a um aquecedor e tomando chá que trazia numa garrafa termo. Ainda sinto o aroma da banana que ela saboreava para nosso “entretimento” e, quem sabe, como estratégia para mantermos nela a concentração. Lá que resultava, isso resultava.
O Natal estava a chegar e, com ele, uma enorme e regeneradora felicidade. As crianças aguardavam, com uma ansiedade tão inocente quanto forte, a vinda do menino Jesus. É que, além de anunciar a chegada de um ano novo e seguramente melhor, ele deixaria, pela calada da madrugada de 25, nas tamancas junto à lareira, presentes para os que se tinham portado bem no ano que findava. Nessa manhã, que ainda era noite, corri para junto da fogueira para me deslumbrar com o brilho cintilante de 3 cigarros de chocolate, 5 bombons recheados, 5 nozes e 5 figos secos.
Hoje, na mesma aldeia, há uma fartura que faz esquecer aqueles tempos, e ainda bem. No entanto, se a maioria das pessoas parece ter de tudo, sempre há quem tenha algumas coisas de mais e outras de menos. Valerá a pena pensar nisto?
Ângelo Ferreira
(Publicado na edição de 11/11/2008 do Diário de Aveiro)
Nota: encontrei esta história escrita nas margens de um velho caderno, o que me deu muito jeito, pois não tinha assunto para a crónica de hoje.
1 comentário:
Excelente história Ângelo. Espero que reencontre mais nas páginas de velhos cadernos.
De facto há certo romatismo quando se fala nos outros tempos. Reconheço-o também nas histórias que oiço na minha aldeia de que no outro tempo é que era bom. Talvez o fosse ao nível de um maior espírito de comunidade... Certo é um enorme evolução ao nível das condições materiais da vida das pessoas. E isso é algo de que não nos podemos esquecer (e até orgulhar) quando ouvirmos contos à volta da lareira
Enviar um comentário