quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Pormenores democráticos

(Espelho falso, René Magritte , 1928)


Quando a 31 de Março de 1976, depois de um demorado processo de discussão foi aprovada a primeira Constituição democrática pós Estado Novo, longe estariam os cerca de 230 deputados presentes, de imaginar que passados 32 anos, aquela “ideia de democracia” ainda estaria em vigor. De facto, durante esse período – o mais longo período democrático ininterrupto de sempre – Portugal conseguiu implementar e amadurecer o seu sistema democrático, quer através do reforço do equilíbrio institucional de poderes, quer ainda na implementação de garantias, direitos e deveres para todos os cidadãos. Hoje, quando perguntados sobre a democraticidade do seu país, poucos deverão ser os portugueses que afirmam convincentemente que não vivemos nesse tipo de sistema. Constitucionalmente, diria que a resposta está consonante, visto que nela estão consagrados os pilares fundamentais de uma democracia: direitos fundamentais, separação de poderes, direitos eleitorais, controlo democrático e direitos económicos e sociais. Mas, será assim do estrito ponto de vista da realidade? Será assim quando atentamos aos pormenores da democracia? Infelizmente, diria que não.
Portugal sofre hoje, provavelmente da mesma “doença” dos países ditos ocidentalizados: a incapacidade de transição de princípios e valores previstos na Constituição e na Lei – e ditos democráticos – para simples comportamentos e práticas do dia-a-dia. Nos dias que correm não é difícil encontrar exemplos corriqueiros mas ilustrativos:

1. Em quase todos os jornais on-line, existe um espaço abaixo de todas as notícias, onde os leitores têm a oportunidade de registar os seus comentários. Constata-se contudo, que esses espaços em vez de serem utilizados para o aprofundamento e discussão dos temas subjacentes, mais não são que espelhos da inutilidade dos seus participantes – maioritariamente anónimos - que trocam impunemente insultos racistas, clubísticos, políticos e de outra espécie/ordem. Num país que consagra a liberdade de expressão e que sanciona penalmente as ofensas à honra não se compreende que admita a existência deste tipo de espaços onde a impunidade e a irresponsabilidade abundam.
2. No âmbito da chamada “simplificação administrativa” ou simplex, cada Ministério dispõe actualmente de uma linha telefónica única – dita verde – para responder a dúvidas, questões e inquietações dos utentes. Tal funcionalidade parecia evidenciar uma aproximação às práticas comuns comerciais de “apoio ao cliente” que permitem a este, de um modo eficaz e célere ver respondidas as suas questões. Constata-se contudo, da realidade, que esta linha mais não é que a antiga linha “maquilhada” de verde. Do outro lado da linha, mantém-se a mesma demora e a mesma ignorância na resposta às perguntas colocadas. Num país que define como prioritária a aproximação entre a Administração e o utente não se admite a implementação de programas “fantoche”.

Poderíamos mostrar com muitos mais exemplos, como Portugal ainda vive longe das suas consagrações constitucionais. É urgente que, os princípios, os valores, os ideais, desçam definitivamente à realidade, percorram a vivência societária e influenciem definitivamente os actos, os projectos e as decisões. É necessário, como propõe, Freitas do Amaral, implementar um “programa de execução integral da Constituição” que preencha os ideais dos constitucionalistas e concretize no dia-a-dia a verdadeira democracia.
A democracia, mais do que nunca, precisa de preocupar com os pormenores. Porque é neles, que vive, o cidadão comum – o verdadeiro fim daquele sistema.

Bernardo Cunha Ferreira

1 comentário:

Carlos Albuquerque disse...

O ideal da democracia é muito exigente e depende muito de todos e cada um.

Mais até do que o não cumprimento da Constituição, preocupam-me as tendências para desvalorizar o próprio ideal democrático. Quer pela via do esvaziamento da solidariedade social (em sentido amplo), quer por se ceder às velhíssimas ideias de achar que a democracia não permite governar tão bem como outros sistemas (esquecendo, claro, que os outros defeitos dos sistemas não democráticos superam largamente os defeitos das democracias).

Quanto aos excessos na liberdade de expressão na net, penso que são um mal, mas não creio que seja uma alternativa saudável reprimi-los usando a lei. É muito fácil limitar a liberdade de propaganda política usando argumentos de defesa da honra e a democracia não fica necessariamente melhor com isso.