Tenho carta há quase 30 anos e conduzo regularmente em Lisboa. Até ao ano passado, nunca tinha chocado contra ninguém, nem deixado que alguém batesse num carro conduzido por mim.
No entanto, no espaço de alguns meses, o meu carro esteve envolvido em quatro acidentes sem gravidade, nenhum dos quais por minha culpa. O mais recente aconteceu na véspera do MEP apresentar as suas “52 Razões de Esperança”, uma das quais refere a diminuição de 50% no número de mortos por acidente de viação desde 2000 e outra a diminuição de 41% no número de infracções ao Código da Estrada entre 2005 e 2007.
No ano passado, fui abalroado pela esquerda por uma habitante local, por sinal muito bem vestida, que vinha distraída a fazer inversão de marcha e a olhar para o lado errado e me arrancou o pára-choques traseiro. Disse-lhe que a tinha visto e tinha tentado fugir, mas que não tinha conseguido. Respondeu enfadada, que não tinha a certeza de ter culpa e acrescentou que, se eu a tinha visto, tinha obrigação de ter parado (!). Enfim, a companhia de seguros dela achou que eu não tinha qualquer culpa e lá me pagou o arranjo.
Meses depois, outro toque: alguém fez marcha-atrás contra o meu carro, que eu tinha acabado de estacionar e de onde saíra um minuto antes. O condutor, também apessoado e habitante local, ficou muito aborrecido porque não deu por eu estacionar e fez marcha-atrás sem olhar, mas lá preenchemos a declaração amigável e tudo ficou resolvido com um pára-choques novo.
Em Agosto passado, outro acidente: uma carrinha de entregas ao domicílio do Continente que seguia à minha frente parou repentinamente e começou a fazer marcha-atrás para facilitar o estacionamento a outra viatura, por sinal em local proibido. Eu vinha atrás, parei e ainda toquei a buzina, mas não fui suficientemente rápido a engatar a marcha-atrás, tão surpreendido fiquei com a manobra. Pumba: mais um capot amolgado. Pensei logo no pior:
- “Se me calha um habilidoso que queira distorcer a realidade, aproveitando-se da circunstância de eu estar por trás, estou tramado”. Para prevenir, pedi logo a dois transeuntes locais que fossem minhas testemunhas, caso o outro condutor não assumisse a culpa do sucedido. De imediato se escusaram, alegando que estavam com pressa. Sendo assim, pedi-lhes o contacto telefónico, mas seguiram o seu caminho, dizendo que ir a tribunal dava muito trabalho. Dei por mim a rosnar qualquer coisa como “Deus queira que um dia não precisem que alguém testemunhe a vosso favor…”
Felizmente o condutor era um imigrante São-Tomense, extremamente educado, que se desfez em desculpas, explicando que só tentou facilitar o estacionamento ao outro e não me viu, por ser uma carrinha de caixa fechada. Lá assumiu a culpa, preenchemos mais uma declaração amigável e a situação lá se resolveu com dois dias de oficina.
- “Desta já me safei” – pensei aliviado, mas fiquei a remoer na recusa dos transeuntes:
- “Onde chegou o egoísmo e a descrença no nosso sistema de justiça…” Este é um dos problemas mais graves da nossa jovem democracia: o mau funcionamento da justiça conduz ao alheamento progressivo dos cidadãos e à diminuição, na prática, do respeito pelos nossos direitos, liberdades e garantias.
Mas o meu carro deve andar azarado, porque no mês passado, ao chegar ao local onde o tinha deixado estacionado de manhã, junto ao passeio mas já perto de uma curva, vejo o pára-choques da frente no chão.
- “Pronto, desta vez é que vou entrar em despesas…” – pensei. Mas fiquei mais aliviado quando vi, entalado no vidro da porta, um cartão de visita dos vinhos “Monte do Limpo”, de Monsaraz, com os contactos do responsável pelo sucedido, José Paulino. Tinha escrito: “Fui eu que dei um toque no seu carro. Agradeço que ligue para mim, para pagar os prejuízos”. Telefonei e atendeu-me uma voz com sotaque alentejano. Pediu desculpa, e explicou-me, que tinha guinado para fugir de outro carro e tocado de raspão no meu pára-choques da frente, arrancando-o do seu encaixe.
Agradeci a cortesia de ter deixado o cartão de visita, referindo que, apesar de ter feito apenas o que está correcto e a sua obrigação, infelizmente, nos tempos que correm, isso nem sempre acontece. Respondeu que era a sua forma de estar na vida, referindo de forma tranquila e educada, que, apesar do carro estar estacionado perto da curva, a culpa tinha sido dele. Disse-lhe que passaria pela oficina, a ver como poderiam fazer a reparação da forma mais barata possível e que depois lhe ligaria de volta.
Fui à oficina e felizmente, apesar do aparato, tudo se resolveu com boa vontade e uma hora de mão-de-obra (29 €). O meu carro é velho e achei que, dadas as circunstâncias, não se justificava a pintura do pára-choques. Como combinado, liguei e deixei uma mensagem no atendedor de chamadas, a dar as boas notícias. Recebo de volta um SMS, com o seguinte texto: “Boa noite Sr. Gonçalo. São 23h e ouvi agora a sua mensagem. Como é tarde não liguei para não incomodar. Agradeço que envie o seu NIB para eu transferir um pouco mais do que os 29 €, que acho pouco para o transtorno que lhe causei.”
Esta mensagem alegrou o meu dia e ainda a tenho guardada no meu telemóvel.
Uns dias depois liguei ao Sr. Paulino. Agradeci a mensagem, informei-o que estava fora de questão aceitar qualquer pagamento adicional e propus-lhe que, em vez de me pagar, teria o maior gosto em que nos encontrássemos da próxima vez que viesse a Lisboa, para poder conhecê-lo pessoalmente e, se quisesse, me trouxesse umas garrafas do seu bom vinho alentejano. Disse-me que não era todos os dias que se encontrava alguém tão colaborante como eu e aceitou de bom grado.
Temos a obrigação de transmitir a esperança de que somos herdeiros e de ajudar a construí-la à nossa volta.
Não sei se é coincidência, mas tenho ido mais vezes às compras ao Continente. Mas sei que, cada vez que abrir uma garrafa do Sr. Paulino, me vou lembrar de contar estas histórias e dizer a quem na circunstância me acompanhar que ainda há portugueses honrados e imigrantes africanos simples e trabalhadores que nos dão lições de civismo.
Gonçalo Rebelo Pinto
sexta-feira, 7 de novembro de 2008
Quando os forasteiros dão o exemplo…
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1 comentário:
Uma exelente história que é uma lição de civísmo! Em 28 anos a conduzir guardo tb com agrado uma ou outra do género.
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