domingo, 21 de setembro de 2008

O Utente – Comunicação Social: como vender na silly season?

por Hugo Martinez de Seabra

Embora não tenha ainda terminado, este verão tem sido animado pela comunicação social (de todo o tipo: audiovisual, escrita, internet e rádio) com relatos extraordinários de crimes, na sua maioria violentos e, segundo reforçam, praticados por imigrantes.

Tudo tem início com duas ocorrências filmadas, uma delas em directo, onde a dicotomia Nós/Outro pôde ser explorada até à exaustão. Refiro-me obviamente ao tiroteio de Loures, aparentemente entre duas “comunidades” rivais realojadas no mesmo bairro, e ao assalto com reféns num Banco em Lisboa, cometido por dois cidadãos brasileiros.

Desde então e até à rentrée política diariamente os noticiários abriam com ocorrências violentas e fora do normal, os jornais faziam manchetes de semelhantes factos, a sociedade voltou a despertar para a insegurança e para uma ameaça presente das “portas para dentro”: os imigrantes enquanto criminosos e violentos.

Recordo-me ter lido, na sequência do assalto ao banco, uma, também ela extraordinária, peça de Barbara Wong no Público intitulada «É uma “ilusão” que os imigrantes em Portugal cometam mais crimes que os portugueses», na qual são questionadas as erróneas generalizações e estigmatizações que emanam de tamanha propaganda. Nessa mesma peça Jorge Malheiros, reputado Professor e Investigador nestas áreas, relembra o verão do pseudo-arrastão e reforça a coincidência destes factos serem sempre noticiados numa altura em que não há notícias. Se me é permitido, dou outro exemplo semelhante indo um pouco mais atrás, ao verão de 2000 e aos assaltos da CREL, fenómeno relatado até à exaustão e com directos em todos os canais pela actriz Lídia Franco.

Neste post, para além da qualidade habitual de utente, escrevo também enquanto investigador que no passado estudou para o Observatório da imigração, conjuntamente com Tiago Santos, o fenómeno da criminalidade de estrangeiros em Portugal. Analisando dados estatísticos do Ministério da Justiça sobre Condenações em Primeira Instância para os sete anos compreendidos entre 1997 e 2003, chegámos à conclusão que as principais razões para os estrangeiros estarem sobre-representados nada têm a ver com a sua nacionalidade, mas sim com factores como o género, a idade e a condição perante o trabalho. Os estudos clássicos da criminologia demonstraram, há larguíssimas décadas, que o homem jovem tem muito maior propensão para a prática de actos desviantes. Como é do conhecimento geral, as populações migrantes, sejam elas africanas, brasileiras, ucranianas ou portuguesas, são, na sua maioria, caracterizadas por um movimento inicial de homens jovens aptos a aceitar qualquer tipo de trabalho remunerado que melhore a sua condição. Ainda no que toca ao estudo de 2005, é fundamental fazer uma ressalva sobre as enormes limitações que enfrentámos quando trabalhámos estatísticas que apenas categorizavam os arguidos/condenados através da dicotomia português/estrangeiro. Neste quadro é fundamental ter presente que nem todos os estrangeiros aí recenseados são imigrantes: um turista, um homem de negócios, um adepto de futebol ou um “correio de droga” nada têm a ver com o fenómeno migratório e todos eles podem estar nesta estatística.

Regressando aos meios de comunicação social e à criminalidade, preocupa-me ter visto semelhantes comportamentos na RTP, onde o jornalismo tem obrigação de ser isento, deontologicamente recto e solto do populismo e imediatismo característicos dos canais rivais. Até o Expresso, ao entrevistar em meia página António Guterres na qualidade de Alto-Comissário da ONU para os Refugiados, decidiu fazer alegações entre a política migratória portuguesa e o aumento da criminalidade.

Escrevo estas linhas para manifestar a minha preocupação sobre estes fenómenos, infelizmente reincidentes, que contribuem para enraizar na opinião pública generalizações estigmatizantes e reacções xenófobas relativamente a um conjunto de seres humanos que no seu dia-a-dia, trabalhando, pagando impostos e contribuições para a segurança social, conscientes dos seus direitos e deveres ajudam Portugal a crescer, a desenvolver-se e esforçam-se esperançados numa conjuntura económica mais favorável.

Como todos já tivemos oportunidade de verificar, já lá vai a “onda de criminalidade” deste verão, já temos de regresso os comícios políticos, o início do ano lectivo, as oscilações dos combustíveis e tudo mais para nos entreter.

Gostaria, por último, de deixar uma pequena nota relativamente aos cibernautas que através dos seus blogs decidiram igualmente reforçar esta ligação entre criminalidade e imigração, questionando as investigações realizadas até ao presente: já nos dizia Karl Popper que a ciência evoluí através da refutação das teorias pré-existentes e apresentação, com base nos mesmos ou novos dados, de novas teorias. Aquilo que durante este verão alguns (poucos) bloggers fizeram foi fácil demais, questionaram as conclusões de um estudo científico, mas não “deitaram mão à massa” para apresentarem uma teoria alternativa que comprove que a existente está errada. É fácil falar, muito mais complicado é concretizar.

A terminar reforço o quanto é fundamental que seja respeitado o código deontológico dos jornalistas no que toca à referência desnecessária a elementos como a nacionalidade, a etnia ou a religião dos envolvidos. Será que gostaríamos que todos os verões, no Luxemburgo, os migrantes pertencentes à nacionalidade estrangeira mais representada nas prisões locais fossem “mediatizados” e estigmatizados como criminosos e delinquentes?


Hugo Martinez de Seabra

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