“A senhora professora estava muito contente, porque inaugurou uma cantina, onde os meninos pobres podem almoçar de graça. (...) Perguntei à senhora professora quem tinha feito tanto bem à nossa escola e ela respondeu-me: - Foi o Estado Novo, que gosta muito das crianças e para elas tem mandado fazer escolas e cantinas, creches e parques. Mas as famílias que possam também devem ajudar. Não te esqueças de o dizer à tua mãe.”
In “O Livro da Primeira Classe, Ensino Primário Elementar”, Ministério da Educação Nacional
A sintonia de meios, fins e de todo o processo que os intermedeia (pessoas, interesses, sentimentos e influências) é provavelmente das tarefas mais difíceis para quem se envolve activamente na política. A história não se cansa de mostrar como dos melhores intuitos políticos surgem as piores concretizações materiais possíveis e de como de esquemas perversos se faz “crescer” sociedades inteiras. A vida também não se inibe de mostrar como meios errados destroem ideais perfeitos ou como a partir de meios estrategicamente positivos se renova finalidades erradas. A questão principal está no respeito pelo paradigma da mulher de César “à mulher de César não basta ser séria, tem que parecê-la”. Aos fins políticos não basta a sua validade mas sua praticabilidade.
A citação no início deste texto não pretende de modo algum ser um elogio do Estado Novo nem tão pouco uma critica feroz à influência do Estado, inclusive nos manuais escolares. Pretende ser o intermédio. Retirar a boa finalidade que lhe está subjacente e introduzir os meios que a tornem perfeita, como a mulher de César.
A ideia que mais me entusiasma nesta frase é a da promoção de uma ideia de estado de gratidão ou de “Estado-Gratidão” em que o Estado (como representante da sociedade) está ao serviço do homem e este reconhecendo essa prestação se sente impelido a estar ao serviço da sociedade. Estaríamos perante uma relação cíclica e fiel de entendimento. Não é amor, nem amizade, nem solidariedade. É simplesmente...gratidão: o desejo de retribuição societária pelo que foi dado societariamente.
Apesar da nobreza deste princípio, tão bem enunciado num simples texto da 1ª classe, o meios empregues pelo Estado-Novo e o processo que mediou meios e fins acabaram por torna-lo simplesmente num princípio para emoldurar. De uma ideia de Estado promotor de um ciclo de confiança, passamos um Estado controlador e criador de dependências. De um ideal com “pernas para andar”, passamos a uma lógica de prisão, de silêncio e de ineficiência.
A realidade actual parece herdar esta relação Estado-individuo: os serviços funcionam mal, o Estado parece querer dificultar a vida dos cidadãos, as pessoas parecem cada vez mais desinteressadas na perspectiva de intervenção pública e cada vez mais preocupadas pela auto-gratidão. Ou talvez não. Lentamente, vão surgindo pequenas frechas libertadoras e que vão aproximando Estado – individuo: a celeridade de alguns serviços públicos (por exemplo as conservatórias de registos), o aumento de voluntariado nas entidades públicas (por exemplo bombeiros), a intervenção popular na elaboração de legislação (as chamadas “consultas públicas”). Exemplos de como lentamente se cria uma sociedade renovável através de um ciclo imparável de gratidão. Promover um Estado que serve o indivíduo é investir numa relação duradoura de confiança. Garantir a aproximação do indivíduo ao Estado é colocar o homem no centro do serviço público. Criar uma sociedade onde Estado e indivíduo se complementem é abrir caminho para que ambos descubram a sua verdadeira finalidade.
Depois do Estado-Polícia, Estado-Providência, Estado-Social, Estado-liberal, quem sabe se agora não é tempo do “Estado-gratidão”. Veremos se os meios não condenam este princípio a uma simples “ideia bonita”.
Bernardo Cunha Ferreira
Sem comentários:
Enviar um comentário