quarta-feira, 1 de outubro de 2008

A Sociedade-Dominó




(depois de alguns minutos de espera)

– O que era?
O jornal
– Qual deles?
O Público
– É só?
Sim! Quanto é?
– 90 cêntimos…
Hoje em dia é tudo tão caro…tiram-nos dinheiro por todo o lado!
– Não tem mais pequenino?
Não!
– Pois, devem achar que temos troco para tudo
Preciso das moedas para o parquímetro…

In dia-a-dia num qualquer estabelecimento comercial português


Há qualquer coisa que não bate certo na relação cliente – empregado, em Portugal. Não me refiro à essência da troca, nem aos mecanismos de mercado, mas às atitudes subjacentes que parecem contraditórias com aquilo que a ordem natural, o bom senso ou as regras de boa convivência comum ditariam. Comecemos pelo cliente. Por vezes excessivamente exigente com o serviço, demasiado mesquinho e incompreensível com determinados aspectos do trabalho prestado, é na maior parte das vezes aquele que faz revelar a verdadeira face do empregado, seja ela boa ou má. Procura na maior parte das vezes uma espécie de desconto, de abatimento ou de promoção especial que verdadeiramente não precisa mas que usualmente consegue. Gosta de meter conversa ou de abrir a boca para dizer apenas que sim ou que não. Normalmente não agradece no fim do serviço. Já o empregado, tendencialmente a parte mais interessada, é na maior parte das vezes aquele que parece menos desejar trabalhar, embora através do trabalho, que directa ou indirectamente garante o seu salário e a sua subsistência. No seu comportamento denota-se sempre uma preguiça inerente, um laxismo constante e um desdém pelo profissionalismo ao ponto de o cliente quase precisar de lhe “pedir desculpa pelo incómodo causado”. Na conversa, na troca de palavras, geralmente azedas ou telegráficas, há um misto de sensação de injustiça ou de iminência de “revolta de escravos sem escravos”.
Da descrição, poderíamos achar que Portugal sofre de uma lacuna de boa educação. Ou até que os portugueses têm mau humor. Ou que não tem capacidade produtiva. Também. Mas não só.
Às portas do século XXI, Portugal sofre hoje de um fenómeno característico de sociedades ocidentalizadas: a menor preponderância de grupos com uma autoridade moral e ética, outrora determinantes, como são a família, a escola, os políticos e os patrões demitem-se cada vez mais do seu papel, originando situações de dislexia social. Se a família deixa de ser o espaço, o laboratório por excelência de relações humanas, não será normal que haja um total desordenamento nos comportamentos sociais? Se na escola, se respira um espírito de concorrência desleal, de facilidade e de “copianço” não será normal que o mundo do trabalho seja o seu espelho? Se o patrão é prepotente, ultra-controlador e egoísta não será normal que o trabalhador seja preguiçoso, descomprometido e desinteressado? Se o trabalho bem feito não é premiado e a falta de zelo é a regra geral, não será normal que a produtividade estagne e os serviços sejam mal prestados? Vivemos numa sociedade perigosamente em efeito dominó. A qualidade das relações humanas e do trabalho não são apenas resultado de pequenos ajustes, programas espontâneos ou simples variações de humor. São resultado da influência estrutural e basilar das famílias, dos professores, dos patrões e dos governantes.
Numa sociedade, onde a ausência de autoridade e coerência destes grupos se vão acentuando, percebe-se melhor o porquê da deterioração de relações, como sejam as entre cliente e empregado. Tal como num dominó, uma sociedade assente em pedras voláteis e ocas, desmorona-se. Peça a peça.

Bernardo Cunha Ferreira

1 comentário:

tiago_f disse...

Muito bem visto!
Mas, de entre os muitos diagnosticos do País que tenho visto ( e um dos problemas é nunca se passar do diagnostico) converge tudo na EDUCAÇÃO. Mas esta EDUCAÇÃO, passa muito por fora da escola, na formação humana das pessoas, mas tambem passa por repensar o que é que se ensina nas escolas, porquê e para quê!