sábado, 13 de dezembro de 2008

"Acorda Amor"


Em 1989 frequentei um seminário em Salzburgo. O local do seminário: um castelo do século XVII - Leopoldskron Schloss - num cenário de montanha austríaca, imortalizado pelo filme “Musica no Coração”, parcialmente filmado no próprio castelo. No quinto dia do seminário, de manhã cedo, bateram à porta do quarto. Fui abrir e dois homens falando alemão - língua que não domino - invadiram o meu quarto e começaram a revistar armários, bagagens, computador, etc.. Uma senhora surgiu pouco depois e colocou-me à frente, para assinar, um documento, com várias cópias, escrito em alemão. Pedi-lhe explicações. Percebi que tinha havido um roubo de jóias no castelo e que uma senhora tinha visto o ladrão. Num reconhecimento, com base nas fotografias dos participantes do seminário, a testemunha tinha-me identificado como sendo o ladrão, sem sombra de dúvidas. Para abreviar uma história longa, o reconhecimento tinha sido baseado na barba e cabelo encaracolado, pretos, e a pele escura.


“A pior coisa que me aconteceu foi num dia que estava a jogar futebol, alguns polícias vieram fazer patrulha e pararam em frente do campo. Puseram-nos a todos de barriga para o chão, um dos polícias pegou em mim e deu-me pontapés na boca e fiquei com a boca ferida e inchada. Senti-me muito revoltado.” Testemunho de Miguel, uma criança, na altura com 11 anos, que vive no Bairro da Quinta da Serra, um bairro de barracas habitado por imigrantes e descendentes de imigrantes cabo-verdianos e guineenses na Área Metropolitana de Lisboa.

Coordenei um Projecto Escolhas na Quinta da Serra. O projecto foi assaltado várias vezes, membros da equipa foram assaltados na rua. Muitas vezes vivemos a desolação do medo disfarçado de código comunitário que proclama nas paredes “morte aos chibos” mais vezes que “morte à bófia”, mas aquela sensação que sobe na espinha e se enrola nas entranhas só tive uma vez: no dia em que o Grupo de Operações Especiais entrou no bairro, como se fosse um exército de ocupação.


Quando vivemos num bairro de barracas somos todos suspeitos? Quando somos diferentes? Quando somos pobres? Quando somos imigrantes? ou pretos, ou amarelos, ou ciganos?

O discurso securitário global, o combate ao terrorismo e à criminalidade, criou nas sociedades democráticas as condições para a suspensão parcial e a título precário dos direitos e liberdades dos cidadãos. Olhando o mundo do ponto de vista do imigrante essa suspensão pode tornar-se total e definitiva e como dizia Rushdie, da condição do migrante pode derivar uma metáfora para toda a humanidade.

O CDS/PP, na pessoa do seu líder, Paulo Portas, impôs um agendamento potestativo sobre a imigração, sobre o qual o nosso partido já tomou, e muito bem, posição. O que nos interessa aqui é, em que medida, a falta de escrúpulos em política e a tentação populista podem desencadear círculos viciosos que conduzem ao agravamento das fractura da sociais, da segregação, da injustiça.

A polícia de segurança pública desempenha o papel essencial de manter o espaço público como tal e neste sentido os polícias que são também, e antes do mais, cidadãos - maridos e mulheres, pais e mães -, têm uma responsabilidade profissional e cívica. São exemplo. Os polícias não são máquinas de guerra, não fazem parte dum exército. Perturba-me por isso que demasiadas vezes se use, sobretudo nas chamadas polícias de elite, uma nomenclatura guerreira. Porque as palavras são importantes. Ao mesmo tempo, o discurso político da segurança vai exigindo resultados. Os resultados provam-se através da estatística e a polícia trabalha para os números e para a demonstração através deles da sua eficácia. Alguns políticos pedem resultados e a polícia prova-os através da estatística.

O Bairro da Quinta da Serra em 2007 mudou de esquadra no âmbito de uma reorganização territorial. Ninguém e nenhuma informação sobre o Bairro passou do antigo comando para o novo. A obsessão dos números põe em causa o senso comum?

O Bairro da Quinta da Serra é o lugar mais pacifico do mundo de manhã, piora de tarde e à noite é um inferno. Qual o sentido de fazer uma manifestação de força policial com um Grupo de Operações Especiais durante o dia? Para trabalhar para a estatística e apaziguar alguns políticos?

Os habitantes do Bairro da Quinta vivem entre dois medos. O medo da minoria organizada e armada que teima em fazer do bairro janela de retalho da criminalidade organizada e o outro medo, o da polícia. E algumas vezes a actuação da polícia foi para eles, mais desmedida, mais inesperada e até mais demencial do que a dos criminosos. Mas um medo gera o outro porque quando se pede protecção não raras vezes a polícia responde: “isso é entre vocês”. Nesse quadro, grande é a tentação de pedir protecção do outro lado, do lado dos criminosos: mais próximos, mais eficazes e menos erráticos. Ou pelos menos, fazer o silêncio. E como dizia Martin Luther King: “Começamos a morrer no dia em que calamos as coisas com as quais não concordamos”.

José da Costa Ramos

1 comentário:

Anónimo disse...

Nao posso deixar de comentar este artigo.

Parece-me um forte retrato do espaco que ocupam os invisiveis das nossas cidades. Invisiveis pessoas que representam a maioria num mundo em que passaram a exitir mais pessoas nas cidades do que no campo pela primeira vez na historia da humanidade.

Que humanidade?