sexta-feira, 6 de março de 2009

Velhos fantasmas

A crise internacional, somada à interna, agravou uma tendência que, não sendo exclusivamente portuguesa, tem por cá grandes adeptos, da esquerda à direita, e que se traduz num glorioso renascer do intervencionismo estatal em todas as esferas da nossa vida.

A face mais visível deste delírio está na crescente defesa de uma maior intervenção na economia, como se ela fosse pequena, num país onde a máquina estatal absorve metade da riqueza produzida, retirando iniciativa às pessoas, onde muitas empresas vivem na dependência do Estado, onde as promiscuidades no mercado político são infindáveis e praticamente impunes.

No fundo, o que está em causa é a liberdade, como um valor em si, ou uma outra ideia de liberdade, mais instrumental, que só é boa quando dá os resultados desejados (para alguns). Eu prefiro a primeira opção, que nos responsabiliza a todos quando as coisas correm mal e exige esforço de todos para que corram bem. A segunda dá os argumentos a favor da intervenção do Estado paternal e de políticos “bem-intencionados” e iluminados, limitando liberdades com a justificação de que é para o nosso bem, para o bem comum. Nada mais desresponsabilizante e perigoso.

Veja-se o que está fazer Hugo Chavez na Venezuela, que agora decidiu, à força, tomar conta das empresas de arroz. Um exemplo extremo dessa “boa vontade” em ajudar os pobres, que acabará por condená-los à miséria económica e social. E há, certamente, quem aplauda esse colectivismo científico do século XXI.

Também por cá começam a fervilhar os argumentos a favor de nacionalizações, como se o Estado pudesse salvar a economia, como se o Estado agisse melhor, como se o Estado gerisse melhor. A crise, que tem múltiplas e complexas causas, deu jeito para abrir alguns sótãos, onde se escondiam, desejosos de aparecer, alguns velhos fantasmas do bicho-papão. Uns querem fazer esquecer que a solução das economias comandadas jaz em tantos lugares a leste e anda moribunda em lugares tão “paradisíacos” como Cuba ou a Venezuela. Outros vão à boleia do politicamente correcto, pois soa-lhes que é o que o povo gosta de ouvir. E outros não conseguem afirmar as suas convicções, perdendo-se na retórica do momento e com medo da verdade.

O Estado deve garantir segurança, regras claras na economia (e o seu respeito), uma justiça actuante e célere, para todos, e igualdade de oportunidades no acesso a serviços públicos fundamentais, como a educação e a saúde, especialmente aos mais carenciados. Deve suprir eventuais deficiências do funcionamento do mercado e, seguramente, o apoio solidário às pessoas mais necessitadas, que estão em situação crítica, em articulação com instituições da sociedade civil, mais próximas da realidade das populações. Mas não deve, sob essa capa de bondade, abusar do seu poder para intervir na economia e nas nossas vidas, limitando liberdades e responsabilidades, enviesando acções e falseando caminhos, determinando resultados, sabe-se lá com que critério.

O que está a acontecer, nomeadamente com o Estado a intervir para salvar algumas empresas e empresários, para estimular mais crédito e consumo interno (loucuras, loucuras) ou para fazer grandes investimentos públicos, de rentabilidade duvidosa nesta altura (estradas, aeroportos, TGV), é disso exemplo, e muito mau. Trata-se de estimular os erros do costume, que nos trouxeram, em grande parte, até aqui. Trata-se de um excesso discricionário no exercício do poder e desperdício de recursos, que sairá muito caro e não se sabe quem favorecerá. Por que razão umas empresas e não outras? Até onde poderemos continuar a endividar-nos? Até onde poderemos gastar? Quem pagará? Perguntas simples que nos devem fazer pensar.

O que é incrível, mas talvez compreensível à luz da nossa história de dependência do Estado (e concomitante subserviência), é que muitos parecem confortáveis com este caminho, como se ele pudesse ter futuro.

Mais incrível ainda, e aparentemente paradoxal, é a forma como muitos empresários parecem satisfeitos com a entrada do Estado na economia, com este paternalismo discricionário, esbanjador e pouco clarificador, talvez expectantes em tirar disso proveito.

O pior é para quem não consegue chegar perto do pote dos impostos, que financia, e para quem tiver de pagar (caro) no futuro estes desvarios.

Ângelo Ferreira

Publicado no jornal Diário de Aveiro de 4 de Março de 2009

Nota: Este texto procura a compreensão de princípios norteadores e não a análise de casos pontuais, onde registo e compreendo a preocupação, o desespero, daqueles que são afectados pela falência das empresas. Tenho por essas pessoas a maior das considerações e preocupações. Julgo que é importante deixar isso claro.

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