segunda-feira, 1 de junho de 2009

Laurinda, Europa e Victor Hugo



"A minha vingança é a fraternidade" dizia Victor Hugo no seu discurso de abertura ao Congresso da Paz em Paris no dia 28 de Agosto de 1849. "Pela Sérvia", do mesmo autor, data de 29 de Agosto de 1876 e é considerado, creio que justamente, um dos actos fundadores da "ideia" Europa.

Confesso que não conhecia o texto, foi-me sugerido por uma citação de Godard na sua história(s) do cinema. Impedido de sair - a recuperar de uma doença malina - e galvanizado pela alegria e justeza da campanha de Laurinda para o Parlamento Europeu, metendo a foice em seara alheia, decidi traduzir: "Pela Sérvia" de Victor Hugo, que aqui deixo em homenagem à campanha de Laurinda ao Parlamento Europeu.

A visão de uma Europa com nacionalidade europeia como condição da paz justifica a leitura do texto ao qual espero a minha falta de arte não tenha retirado todo o seu esplendor. O que aconteceu na Sérvia, há mais de um século, aconteceu depois muitas vezes e em muitos lugares o que prova, que para todos os efeitos, é um erro pensar que a história não se repete. O que aconteceu na Sérvia, há mais de um século, aconteceu depois muitas vezes, em muitos lugares e uma só vez mais, num único lugar, já teria sido monstruoso. O que aconteceu na Sérvia, há mais de um século, aconteceu, também, no nosso tempo. Como pode a nossa consciência suportar o horror?


Cabe perguntar: No dia 7 de Junho estamos só a votar para o Parlamento Europeu?


Vota Laurinda!







Pela Sérvia

È necessário chamar a atenção dos governos europeus para um facto de tal forma pequeno, que segundo parece, os governos não se apercebem. Eis o facto: assassina-se um povo. Onde? Na Europa. Esse facto tem testemunhas? Uma testemunha, o mundo inteiro. Vêm-no os governos ? Não. As nações têm acima delas uma coisa que está abaixo delas os governos. Em certos momentos, este contra-senso explode: a civilização está nos povos, a barbárie está nos governos. Esta barbárie é desejada? Não; ela é simplesmente profissional. O que o género humano sabe, os governos ignoram. Daqui decorre que os governos não vejam nada senão através dessa miopia, a razão de estado; o género humano olha com um outro olho, a consciência.



Vamos surpreender os governos europeus ensinando-lhe uma coisa, que os crimes são crimes e que não é permitido mais a um governo que a um indivíduo ser um assassino, que a Europa é solidária, que tudo o que se faz na Europa é feito pela Europa, que se existe um governo animal feroz, ele deve ser tratado como animal feroz; que na nossa hora, perto de nós, ali, sob os nossos olhos, massacra-se, incendeia-se, pilha-se, extermina-se, corta-se o pescoço aos pais e às mães, vendem-se as meninas e os meninos; que, as crianças demasiado pequenas para serem vendidas, cortam-se ao meio com um golpe de sabre; que se queimam as famílias nas suas casas. Que uma certa cidade, Balak, por exemplo, é reduzida em algumas horas de nove mil habitantes a trezentos; que os cemitérios estão atulhados de mais cadáveres que os que se podem enterrar, de maneira que aos vivos a quem foi enviada a carnificina, os mortos reenviam a peste, o que é bem feito; Mostramos aos governos da Europa isto, que se abrem mulheres grávidas para lhes matar as crianças nas entranhas, que há nas praças publicas montes de esqueletos com sinais de esventramento, que os cães roem nas ruas os crâneos das meninas violadas, que tudo isto é horrível, que bastaria um gesto dos governos da Europa para o impedir, e que os selvagens que cometem estes actos são assustadores, e que os civilizados que os deixam cometer são abomináveis.



Chegou o momento de elevar a voz. A indignação universal eleva-se . Há horas em que a consciência humana toma a palavra e dá aos governos a ordem de a escutar. Os governos gaguejam uma resposta. Já tentaram esse balbuciamento. Eles dizem: exagera-se. Sim, exagera-se. Não foi em algumas horas que a vila de Balak foi exterminada. Foi em alguns dias; diz-se duzentas cidades queimadas não foram senão noventa e nove; o que vocês chamam a peste não é senão o tifo; nem todas as mulheres foram violadas, nem todas as raparigas foram vendidas, algumas escaparam. Castraram-se prisioneiros, mas cortou-se-lhe também a cabeça, o que menoriza o facto; a criança que se disse ter sido lançada de uma lança para outra não foi, na realidade, senão posta na ponta de uma baioneta; onde existe um vocês põem dois, engrossam o duplo; etc., etc. E depois, porque é que esse povo se revoltou? Porque é que um rebanho de homens não se deixa possuir como um rebanho de animais? Porquê? ..etc.



Esta maneira de mitigar adiciona ao horror. Chicanear a indignação pública, nada mais miserável. As atenuações agravam. É a subtileza em defesa da barbárie. É Bizâncio a desculpar Istambul. Chamemos as coisas pelos seus nomes. Matar um homem no recanto dum bosque chamado floresta de Bondy ou floresta Negra é um crime; matar um povo no recanto desse outro bosque que se chama a diplomacia também é um crime. Maior. Eis tudo. Será que o crime diminui na razão da sua enormidade? Aí está! É de facto uma velha lei da história. Mate seis homens, será Troppman; mate seiscentos mil, será Cesar. Ser monstruoso, é ser aceitável. Provas: O (massacre de) Santo Bartolomeu, abençoado por Roma; As “Dragonades”, glorificadas por Bossuet; O Dois de Dezembro, saudado pela Europa.
Nós respondemos: A humanidade também tem a sua questão; e essa questão aqui está, é maior que a Índia, a Inglaterra e a Russia: é a criança no ventre da sua mãe. Substituamos as questões políticas pela questão humana. Todo o futuro está aí. Digamo-lo, seja o que se fizer, o futuro será. Tudo lhe serve, mesmo os crimes. Servidores terríveis.



O que se passa na Sérvia demonstra a necessidade dos Estados Unidos da Europa. Que aos governos desunidos sucedam os povos unidos. Acabemos com os impérios que matam. Açaimemos os fanatismos e os despotismos. Quebremos as espadas ao serviço das superstições e os dogmas que têm o sabre no punho. Não mais guerras, não mais massacres, não mais carnificinas; livre pensamento, livre troca; fraternidade. É assim tão difícil, a paz? A República da Europa, a Federação Continental, não existe outra realidade política senão esta. As razões o constatam, os acontecimentos também. Sobre esta realidade, que é uma necessidade, todos os filósofos estão de acordo, e hoje os carrascos juntam a sua demonstração á demonstração dos filósofos. À sua maneira, e precisamente porque ela é horrível, a selvajeria testemunha a favor da civilização. O progresso está assinado Achmet-Pacha. O que as atrocidades da Sérvia colocam fora de dúvida, é que falta à Europa uma nacionalidade europeia, um governo uno, uma imensa arbitragem universal, a democracia em paz com ela mesma, todas as nações irmãs tendo como cidade e como lugar central Paris, quer dizer a liberdade tendo por capital a luz. Numa palavra, os Estados Unidos da Europa. É o objectivo, é o porto. Ontem isto não era senão a verdade; graças aos carrascos da Sérvia, é hoje a evidência. Aos pensadores juntam-se os assassinos. A prova estava feita pelos génios, ei-la feita pelos monstros. O futuro é um deus treinado por tigres.



Paris, 29 août 1876.



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