quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Esquerda e direita

Ainda há esquerda e direita?


João Cardoso Rosas

Professor de Filosofia Política



A distinção política entre a esquerda e a direita começa com a própria génese do Estado constitucional moderno. Foi no ano de 1789, depois da transformação dos Estados Gerais franceses, em Assembleia Nacional Constituinte, que os deputados formaram espontaneamente dois grupos distintos. Um deles, situado do lado esquerdo da sala, era contrário ao veto legislativo do rei. O outro grupo, sentado do lado direito, era favorável a esse mesmo veto legislativo. Prefigurava-se assim uma divisão dicotómica do espaço político que se manteria em assembleias subsequentes. Depois da queda de Napoleão e da Restauração da monarquia, já na segunda década do século XIX, a dicotomia entre a esquerda e a direita passa a ter o significado claro de oposição entre a nova e a velha França, entre os liberais e moderados e os ultra-realistas. 


Apesar de estar associada a um tempo e um lugar precisos, a dicotomia entre a esquerda e a direita tem mostrado uma resistência extraordinária. Ela nunca deixou de, sob formas diferentes e com ideias renovadas, marcar a vida política francesa. Mas, mais do que isso, ela generalizou-se a todas as democracias constitucionais na Europa e no mundo. Onde há liberdades fundamentais e democracia, há uma direita e uma esquerda. Mas há também uma esquerda não democrática (estalinista, por exemplo) e uma direita não democrática (salazarista, por exemplo). O que explica esta capacidade da dicotomia para se projectar universalmente e para perdurar ao longo do tempo?


Num certo sentido, falar de esquerda e direita simplifica e facilita a leitura do espaço político pluralista. Agrupamos diversas sensibilidades ou partidos sob dois "guarda-chuvas" apenas. Mas isso recorda-nos que há muitas esquerdas (socialistas ou liberais) e muitas direitas (liberais ou conservadoras).


Vários pensadores contemporâneos têm procurado um critério distintivo entre esquerda e direita. Alguns - como Norberto Bobbio - defenderam que aquilo que distingue a esquerda da direita é a diferença de atitudes em relação à igualdade. A esquerda quer corrigir as desigualdades existentes, sejam elas de "status", económicas, de género, etc. Por isso, a esquerda ataca as hierarquias tradicionais, a desigualdade da riqueza, ou a sujeição das mulheres. A direita, por sua vez, tem reticências em relação à promoção da igualdade pelo Estado. Para a direita, este tipo de activismo interfere demasiado nas tradições da sociedade civil e mesmo na liberdade dos cidadãos.


Se olharmos para a distinção entre esquerda e direita, de acordo com a sua diferente atitude perante a desigualdade, julgo que é ainda possível descortinar, em Portugal e noutros países, uma esquerda e uma direita. Mas não devemos ser preconceituosos e pensar que não há uma única forma de ser de direita ou de ser de esquerda. A esquerda não tem de ser socialista, pode também ser liberal. A direita não tem de ser liberal, pode também ser conservadora e até muito estatista. E tanto a esquerda como a direita podem ser anti-democráticas.       


            Há ainda um outro problema. Muitas vezes, o discurso político corrente não serve para mostrar a realidade, mas para a encobrir. Assim, é normal que alguns façam discursos de esquerda e políticas de direita, ou discursos de direita e políticas de esquerda. Mas até o facto de nem sempre a acção estar alinhada com o discurso nos recorda a importância crítica da distinção entre esquerda e direita. Quando ela se esfuma, ou deixa de ser facilmente perceptível, a democracia está em maus lençóis. (in CAIS 124)

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