Sendo ontem o dia das mentiras, eu não dei muita importância à nova estratégia do reeleito presidente da associação empresarial, Associação Nacional de Farmácias (ANF), João Cordeiro. Isto aconteceu até constatar que a notícia afinal era verdadeira.
Então, no dia 1 de Abril de 2009, o empresário João Cordeiro revelou o próximo objectivo comercial das mais de 2700 farmácias que representa:
“Vão informar o doente do preço do medicamento que foi prescrito pelo médico, vão-lhe dar conhecimento que o médico não autorizou a substituição e vão-lhe dar a possibilidade de ser dispensado o medicamento genérico mais barato e o doente assina a receita. Na nossa óptica não é uma ilegalidade, é uma obrigação nossa.”
Mais, esta estratégia já foi enviada em forma de recomendação para as mais de 2700 farmácias portuguesas!!
Contudo, ele, João Cordeiro, esquece-se (talvez porque lhe seja benéfico para os interesses da sua empresa) da lei e do código deontológico da Ordem dos Farmacêuticos, que diz o seguinte:
"Capitulo II: Deveres gerais dos farmacêuticos
Artigo 6º
- A primeira e principal responsabilidade do farmacêutico é para com a saúde e o bem-estar do doente e da pessoa humana em geral, devendo por o bem dos indivíduos à frente dos seus interesses pessoais ou comerciais e promover o direito das pessoas a terem acesso a um tratamento com qualidade, eficácia e segurança.
Artigo 12º
No exercício da sua actividade na farmácia de oficina ou hospitalar o farmacêutico deve:
c) Dispensar ao doente o medicamento em cumprimento da prescrição médica ou exercer a escolha que os seus conhecimentos permitem e que melhor satisfaça as relações benefício/risco e benefício/custo;
Artigo 15°
No exercício da sua profissão o farmacêutico deve pautar-se pelo estrito respeito das normas deontológicas, sendo-lhe vedado designada mente:
a) Estabelecer conluios com terceiros;
f) Praticar actos contrários à ética profissional que possam influenciar a livre escolha do utente.
(podem consultar o código da Ordem dos Farmacêuticos na íntegra.)
E depois, João Cordeiro chega a acenar com pareceres jurídicos para suportar a sua decisão... é que hoje em dia está na moda em Portugal esta coisa dos pareceres. Ele esquece-se é que pareceres há muitos e de péssima qualidade, mas a lei é CLARA.
Aliás, a outra associação empresarial, a Associação Farmácias de Portugal, que representa 108 sócios, já veio a público dizer que não subscreve a decisão da ANF, porque segundo as palavras da sua vice-presidente Aline Aguiar: “Isto é uma ultrapassagem. A lei é a lei. Os farmacêuticos estão a ser confrontados com uma situação que não é generalizada. A nossa associação não subscreve."
Também a bastonária da Ordem dos Farmacêuticos já se manifestou contra a recomendação da ANF de João Cordeiro, dizendo o seguinte: "Vivemos num Estado de Direito, as leis têm de ser cumpridas", adiantando que "quando um farmacêutico não cumpre a lei, o órgão disciplinar da Ordem terá de agir". O bastonário da Ordem dos Médicos também já veio em comunicado se manifestar contra esta recomendação da ANF.
Está também definido numa portaria de 2002, que o modelo de receita médica destinado à prescrição de medicamentos determina que compete ao médico autorizar ou não a dispensa de genéricos, assinalando a sua opção em local apropriado.
É que João Cordeiro esquece-se que somente o médico tem na sua posse a ficha clínica do doente, e que somente o médico tem os conhecimentos, a formação e experiência epidemiológica e de farmacovigilância que lhe permite racionalmente decidir por um genérico ou não. È que muitos julgam que os genéricos têm a mesma eficácia que os medicamentos de marca só porque têm o mesmo princípio activo, e isso é FALSO. É certo que ambos podem ter efeitos semelhantes, contudo eles têm substâncias (excipientes) diferentes e é isso que vai determinar, por exemplo: se um doente é alérgico a um genérico ou a um medicamento de marca (uma reacção alérgica/anafilática pode levar à morte do doente!); ou se um doente com hipertensão consegue ver controlada a sua tensão arterial ou não (e nesse caso a sua vida está em risco!), etc. Isto significa pois, que a Saúde Pública está em grave risco, se for o doente a decidir por um genérico ou não, ou se esta decisão vier de quem não tem o direito nem a competência para prescrever a medicação segundo a lei.
Em vez de gastar dinheiro em projectos sem sustentabilidade financeira, o Estado devia isso sim preocupar-se com este problema grave de Saúde Pública a que assistimos. Cabe ao Estado financiar a medicação apropriada a cada doente caso este não tenha meios financeiros para pagá-la. Ao médico cabe o papel de contribuir para o bem-estar e para saúde dos seus doentes, e o dever ético de alertar as autoridades competentes (de saúde e da segurança social) quando tiver conhecimento de doentes que não possam pagar a medicação apropriadamente prescrita.
E muito mais ficará por dizer, mas não quero estender mais este já de si longo texto.
João Ferreira
Nota importante: Quero deixar claro, que eu sou um profissional de saúde que prescreve medicação e que não pertence à Ordem dos Médicos, e que escrevo este documento nessa condição. Este texto não é, e não pretende ser, a posição do Movimento Esperança Portugal.
Referências:
www.expresso.pt
http://www.rr.pt/InformacaoDetalhe.aspx?AreaId=23&SubAreaId=39&SubSubAreaId=79&ContentId=282285
http://dn.sapo.pt/inicio/interior.aspx?content_id=644653
Para conhecer outras opiniões de João Cordeiro da ANF consultem: http://apontamentos.blogspot.com/2007/07/entrevista-de-joo-cordeiro.html
5 comentários:
Só para dar os parabéns pelo modo fundamento como o MEP reagiu às declarações às declarações de João Cordeiro.
Um modo exemplar de fazer política.
João Ferreira
Admitindo que todos os médicos que não receitam genéricos o fazem por razões técnicas sérias, seria admissível que o médico que não autoriza a substituição fosse obrigado a justificar tal procedimento (escrevendo por exemplo: o doente é alérgico a este excipiente do genérico que não existe no medicamento de marca, ou algo que deixasse clara a razão técnica da decisão)?
Caro Carlos,
Essa informação relativa às alergias jamais poderá ser escrita no receituário, pois tal seria uma violação da lei da privacidade do doente. Toda a informação que consta do ficheiro clínico do doente é do foro privado, e qualquer clínico deve fundamentar no ficheiro clínico a razão para tal prescrição por razões médicas, éticas e legais.
Eu queria também mencionar, que cabe também ao farmacêutico contactar o médico (e isso já acontece nalguns casos), quando o doente não tem acesso aos medicamentos prescritos por razões financeiras. E, neste caso, cabe ao médico decidir se altera o receituário do doente baseando-se numa avaliação benefício/risco para o doente. Depois dessa avaliação, se o médico decidir não alterar, é dever ético do médico contactar as autoridades competentes por forma a que o doente possa tomar a sua medicação. A direito à saúde é, por imperativos éticos e constitucionais, um direito que assiste a todos os portugueses.
abraço,
joão ferreira
Caro João
Muito obrigado pelos esclarecimentos.
Contudo, não percebo porque é que seria violar a privacidade do doente escrever no receituário a razão da prescrição. Afinal o farmacêutico também é um profissional de saúde e poderia estar naturalmente obrigado ao sigilo profissional. Além disso muitas vezes só a prescrição do medicamento já pode revelar mais sobre o doente do que aquilo que ele quer que se saiba.
De qualquer modo, seria admissível que houvesse uma inspecção por parte da Ordem dos Médicos a verificar, em situações aleatoriamente escolhidas, se o processo clínico justificava a opção pelo medicamento de marca mais caro?
Caro Carlos,
A "razão" para a prescrição não se fundamenta num só critério, mas em vários critérios complexos tendo em conta vários factores do âmbito bio-psico-social, farmacológico, etc, que constam da ficha clínica. Dada a complexidade deste acto médico, o farmacêutico não está apto para interpretar a "razão" que está por detrás da prescrição médica. A Ordem do Médicos e a Inspecção Geral da Saúde fazem regularmente inspecções aos actos médicos, inclusive já foram administradas sanções disciplinares e criminais contra os médicos infractores.
Quero deixar claro que toda a informação relativa ao doente é do foro pessoal e privado, e não deve nem pode ser tornada pública num estabelecimento público e comercial como é o caso de uma farmácia.
Mais, por si só a medicação prescrita, por se basear em critérios complexos, não consegue revelar o historial clínico de um doente. Se o farmacêutico tem dúvidas quanto à racionalidade do acto médico pode e deve em primeiro lugar contactar o médico responsável.
cumprimentos,
joão ferreira
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