O governo, além de contribuir com um novo conceito para o dicionário da Academia e compêndios do “melhor Direito do Mundo”, quer taxar em 60% o suposto “enriquecimento ilícito” (mais de 100 000 euros na conta sem aparente justificação nas declarações fiscais) através das Finanças, que passarão a ter acesso facilitado às contas bancárias dos portugueses (quebra do sigilo bancário), punindo fiscalmente o “prevaricador”.
Convirá não esquecer que a quebra do sigilo bancário já é possível, autorizada por um juiz, sempre que determinada pessoa seja alvo de investigação, suspeita de um qualquer crime que lhe tenha rendido riqueza obtida de forma ilegal (corrupção, peculato, furto, etc.).
Como diz o conhecido penalista Costa Andrade, e tantos outros, o problema da luta contra o crime económico em Portugal não se fica a dever à falta de leis, mas antes à ausência da sua aplicação eficaz. Ora aí é que “a porca torce o rabo”, como bem se sabe.
Mas, então, o que falha? Falha precisamente a aplicação da Justiça, pelo que os nossos iluminados representantes no parlamento e membros do governo, querendo dar uma boa imagem de si, inventam uma perigosa falácia e aceitam de bom grado a falência da Justiça.
Para não falirem os cofres do Estado, que parece ser o que mais os anima, vai-se lá saber porquê, toca de ir ao que interessa: sacar dinheiro. Aumentam-se as custas judiciais, tornando ainda mais difícil o recurso à Justiça, sobretudo para pobres. E vai-se buscar 60% do dinheiro que supostamente alguém amealhou de forma ilícita. Aquele a quem sacam o dinheiro terá então de recorrer para os tribunais e provar (a tal inversão do ónus da prova que Sócrates dizia recusar) de onde lhe vem “licitamente” o dinheiro que tem na conta. Nesse vai e vem, que não será processo fácil nos tribunais, o dinheiro já está do lado do bom Estado, folgando as costas.
A medida de taxar o “enriquecimento ilícito” pode até parecer boa, mas ela é apenas mais uma machadada numa Justiça moribunda e a coroação do clima de desconfiança reinante, promovendo-se a devassa da privacidade e a perda de liberdade em favor da administração fiscal, além de incentivar outras práticas igualmente nefastas para o país.
A ideia de que “quem não deve não teme” não faz sentido nenhum neste caso (e duvido que em algum caso). Qualquer pessoa deve ser considerada inocente até prova em contrário, nos locais certos, que são os tribunais, onde tem direito de defesa (embora fragilizado), e não na administração fiscal, que não tem competências para tal, pode ser facilmente instrumentalizada, e onde o direito de defesa é uma miragem no deserto.
Assim, temo que o incentivo será para não meter o dinheiro em contas bancárias, voltando para debaixo do colchão. Ou então poderá ser metido em contas bancárias especiais, paralelas, não registadas. Ou ainda investido na economia paralela. Restando ainda uma solução mais higiénica: mandá-lo para fora do país. Tudo isto com nefastas consequências na vida do país, desde a fuga de capitais, a diminuição da poupança, a diminuição da liquidez disponível, o aumento das taxas de juro, aos incentivos para a corrupção a todos os níveis: na economia paralela, na máquina fiscal, na banca, nos meios políticos.
É também preciso dizer que a corrupção é mais complexa do que parece, podendo, por exemplo, gerar o recebimento de “dinheiros lícitos”. Imaginemos que uma grande obra pública, aprovada por governantes nacionais ou locais (corruptos), de utilidade duvidosa para os contribuintes, pode ter contrapartidas indirectas e subtis, como gerar contratos ou empregos para correligionários, amigos ou familiares.
Pior de tudo é que, em vez de assegurar um sistema de Justiça sério (função primordial do Estado), o governo prefira ficar para si com 60% de dinheiro que considera “sujo” (ilícito). Esta confusão entre Justiça e Impostos não pode dar coisa boa.
Em tempo de crise, será de admitir que a Justiça que temos faliu ou que “ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”?
Ângelo Ferreira
Publicado no jornal Diário de Aveiro de 21/04/2009
2 comentários:
Não só "ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão" como em alguns caso ainda tem direito a uma qualquer condecoração!
Aplicar a lei e não mudá-la (ainda por cima mal), passar das boas ideias à prática, dos planos à acção exigem juízo, senso comum e coragem política, predicados que não se adquirem por anúncio no jornal.Grande análise política! Estás a habituar-nos mal ;)
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